quinta-feira, 31 de maio de 2012

Memórias Sentimentais de João Miramar




1. O Penseiroso 


Jardim desencanto
O dever e procissões com pálios
E cônegos
Lá fora
E um circo vago e sem mistério
Urbanos apitando nas noites cheias
Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas.
 O Anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser mãe de Deus.
Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima do copo. Um manequim esquecido vermelhava.
 Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não têm pernas, são como o manequim da mamãe até embaixo. Para que perna nas mulheres, amém.

2. Éden


A cidade de São Paulo na América do Sul não era um livro que tinha cara de bichos esquisitos e animais de história.
Apenas nas noites dos verões dos serões de grilos armavam campo aviatório com os berros do incrível São Bento as baratas da sala de jantar.

3. Gare do infinito

Papai estava doente na cama e vinha um carro e um homem e o carro ficava esperando no jardim.
Levaram-me para um casa velha que fazia doces e nos mudamos para a sala do quintal onde tinha uma figueira na janela.
No desabar do jantar noturno a voz toda preta da mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que carregou meu pai.

4. Gatunos de crianças

O circo era um balão aceso com com músicas e pastéis na entrada.
E funâmbulos cavalos palhaços desfiaram desarticulações risadas para meu trono de pau com gente em redor.
Gostei muito da terra da Goiabada e tive inveja de vontade de ter sido roubado pelos ciganos.

5. Perigo das armas

Entrei para escola mista de D.Matilde.
Ela me deu um livro com cem figuras pra contar a mamãe a história do rei Carlos Magno.
Roldão num combate espetou com um pau a gengiva aflita do Maneco que era filho da venda da esquina e mamãe botou no fogo a minha Durindana.

6. Maria da Glória


Preta pequenininha do preço das cadeias. Cabelos brancos e um guarda-chuva.
O mecanismo das pernas sob a saia centenária desenrolava-se da casa lenta à escola pela manhã branca e de tarde azul.
Ia na frente bamboleando meleta pelas portas lampiões eu menino.

7. Felicidade


Napoleão que era um grande guerreiro que Maria da Glória conheceu em Pernambuco disse que o dia mais feliz da vida dele foi o dia em que eu fiz a primeira comunhão.

8. Fraque do Ateu


Saí de D.Matilde porque marmanjo não podia continuar na classe com meninas .
Matricularam-me na escola modelo das tiras de quadros nas paredes alvas escadarias e um cheiro de limpeza.
Professora magrinha e recreio alegre começou a aula da tarde um bigode de arame espetado no grande professor Seu Carvalho.
No silêncio tique taque da sala de jantar informei mamãe que não havia Deus porque Deus era a natureza.
Nunca mais vi o Seu Carvalho que foi para o inferno.




                                     (trechos de "Memórias Sentimentais de João Miramar" - Oswald de Andrade)


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