"a identidade entre loucura e doença mental, que a principio pode nos parecer tão natural é, na verdade, uma construção muito recente na história do pensamento ocidental. autores como Michel Foucault e Robert Castel nos mostram que até o início da Modernidade os loucos nao eram considerados doentes, nem faziam parte das preocupações do pensamento médico.
o problema representado pela loucura pode ser inicialmente localizado no contexto de uma grave crise social presente na Europa nos seculos XVII e XVIII e identificado como o problema da desocupação de uma grande população que, expulsa da terra, passou a se condensar nas cidades.
para responder a esse problema social muitos estados europeus adotaram como medida o confinamento em instituições semijuridicas, cuja proposta era a de subordinar a população confinada a uma ética do trabalho vista como capaz de combater a pobreza e a ociosidade. as casas de internamento recolhiam mendigos, deficientes, doentes, velhos, crianças ou seja, uma gama muito grande de populações, entre elas os loucos, e não estavam orientadas por uma logica médica, logo, não visava a cura de loucos, doentes ou deficientes, apenas sua reclusão e subordinação ao trabalho.
em meados do século XVIII, no processo de revolução industrial, esse tipo de internamento foi avaliado como erro economico e as instituições esvaziadas, pois a população passou a ter valor num mercado de trabalho em constituição. o pensamento economico inaugurado nesse período considerava os pobres essenciais para a produção da riqueza de uma nação, desde que livres no mercado de compra e venda de força de trabalho.
foi no processo de fechamento dessas instituições que algumas populações, tais como os loucos e os doentes, passaram a demandar medidas de outros tipos. nesse contexto, identificamos a organização do hospital moderno e do asilo especialmente destinado ao internamento dos loucos, com estruturas e proposições distintas.
é importante assinar que a definição sobre a necessidade do confinamento dos loucos esteve relacionada a um tipo específico de sensibilidade social e foi justificada pela suposta periculosidade daqueles vistos como loucos e sua evidente incapacidade para o trabalho. esses elementos, a necessidade de internação e o perigo representado pelo louco, são anteriores à configuração da psiquiatria como área de especialidade médica e já estavam presentes no contexto social em que esta disciplina emergiu.
Castel, ao estudar o nascimento da psiquiatria na França, considera que ela e o asilamento psiquiátrico tornaram-se possíveis no ambito de uma nova partilha do poder de governar os marginalizados na sociedade moderna, para a qual a repressão da loucura ainda é assumida como necessária, mas que não pode ser realizada pelo poder judiciário, pois suas manifestações não se configuram como violão do contrato social.
a intervenção sobre o louco não se opera mediante uma ação juridico-policial direta, porém, sua gestão se dá baseada em critérios técnico-científicos que estabelecem uma nova relação social com o louco, a relação de tutela. essa relação indica a impossibilidade de o individuo assumir o contrato, ou seja, ser capaz de participar de uma sociedade regida por leis e assujeitar-se de seus deveres de cidadão para poder ter respeitados seus direitos.
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>> as proposições do tratamento moral como primeira modalidade de intervenção terapeutica
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amplamente conhecidas, tanto na literatura que trata da historia da psiquiatria quanto na que trata da historia da terapia ocupacional, são as trajetorias de Pinel, na França, e de Tuke, na Inglaterra (...) suas estratégias são herdeiras, como ja apontamos, de uma demanda social que exigia a exclusão dos loucos que incomodavam o bom funcionamento social, ao mesmo tempo que desenvolvem um saber que passa a justificar a medida de internação como necessaria ao tratamento da doença mental. em seu momento inicial a psiquiatria ainda nao estava ancorada no modelo clinico (anatomo-patologico), característico da medicina moderna, e sim numa concepção social sobre a doença mental e suas causas.
em linhas gerais, o doente mental era visto como alguem que não suportou a pressão ou as influencias de seu meio social. para os primeiros alienistas, a doença mental estava relacionada à vida nas cidades e seu excesso de estímulos, e aos efeitos danosos atribuídos ao nascente mundo industrial; assim, seria necessário o isolamento do doente em um meio que pudesse faze-lo retornar a uma vida mais "natural".
essa visão social do problema também determinou que a terapeutica empreendida visasse à recondução do doente a um papel socialmente aceito, que no caso da sociedade industrial nascente implicava o desenvolvimento de estrategias que pudessem reconduzir o doente ao desempenho do papel do trabalhador, daí a centralidade adquirida pelo trabalho no interior da prática asilar.
esse primeiro modelo ainda está presente nas praticas asilares, tendo sido por seu intermedio que a terapia ocupacional constriu seu primeiro modelo de intervenção, durante o chamado processo de reemergencia do tratamento moral, ocorrido em torno da déc. 20. (...) houve por parte da psiquiatria a retomada do tratamento moral, esquecidos ao longo do desenvolvimento da disciplina psiquiátrica que, ao adotar o modelo clínico centrado na localização cerebral das doenças mentais, assumiu uma posição pessimista sobre as possibilidades de tratamento e curas dessas doenças.
<< a crise da instituição psiquiátrica >>
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as instituições psiquiátricas só passaram a ser alvo de crítica mais efetiva no período que sucedeu as duas grandes guerras mundiais. nesse contexto, foram questionadas por sua baixa eficacia terapeutica e pelo seu alto custo, seus efeitos de violencia e exclusão social, tendo sido, em muitos países, comparadas aos campos de concentração.
o cenário pós-guerra revelou também a necessidade de reparação dos efeitos devastadores da guerra e redefiniu o papel do Estado no asseguramento de direitos antes não reconhecidos. nesse contexto, a saúde foi assumida como direito e foram propostas reformulações na oferta assitencial ao doente mental.
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Terapia Ocupacional em Saúde Mental: tendências principais e desafios contemporâneos (Elisabete Mângia e Fernanda Nicácio)
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