terça-feira, 15 de março de 2011
carta ao velho rosa
"Meu velho Rosa, nasci aqui e vivi nessa morada
Criei meus filhos com a minha doce amada
e trabalhava com prazer de sol a sol
com muita fé arava a terra onde plantava
colhia tudo que a familia precisava
e ainda guardava mantimentos no paiol.
Ê, êi, tempo bom se trovejava
Ouvia o vento que aeiouivava.
Tirava leite e fazia uns queijinhos
curtia couro e trançava os meus laços
moía cana e fazia rapadura
era fartura o que eu tirava desses braços.
Como era bom levar os bois pelos trieiros
ouvindo o carro que cantava sem parar
era pra mim o mais famoso seresteiro
cantava triste só pra gente se alegrar.
Meu filho chamando a guia
era minha companhia que contente assoviava.
Ê, êi, tempo bom se trovejava
Ouvia o vento que aeiouivava.
Era assim que vivia ali naquele pé de serra onde o mundo principia. Aquilo tudo ali era nada, mas foi ali na beira daquela aguada que ele fez sua morada, construiu sua familia. Fez casa boa de teia, paredes com tijolos de barro, esteios de aroeira e até o piso era assual de madeira, onde já dançou muito catireiro bão. Fez a cerca de arame que separa os pastos, casinha de queijo, curral, paiol, chiqueiro, barracão, até o carro de boi, as cangas, os canzis, o cambão, tudo aquilo ali ele fez na mão.
Mas naquele tempo era bão: a fazenda vivia cheia. Tinha muito agregado que tocava roça na meia, muita gente para ajudar e também para prosear. Tirou um rego d'água que ele trazia sempre limpinho onde o menino mais velho gostava de brincar. Ali ele punha seu barquinho para navegar. Soltava ele lá na cabeceira da grota e vinha acompanhando ele rego abaixo até chegar lá no rancho do monjolo onde tem a bica do pau de buriti. Era ali que o barquinho vinha cair.
De todas as benfeitorias que tinha feito, o monjolo era o que ele mais gostava, pois os dois se pareciam. Eles tinham a mesma mania: trabalhavam sem parar. Ele desde antes do amanhecer até depois que escuricia e o monjolo pra parar ainda carecia de alguém lhe segurar. Se deixasse por conta dele, trabalhava dia e noite sem parar, pilando o arroz, o café ou triturando o milho pra fazer canjica ou fubá. A água que caía da bica no seu cocho pesava e ele subia, depois jogava aquela água fora e descia com toda a força no pilão sempre com aquela mesma cantiga que a gente nunca cansava de escutar. E sempre ali naquele mesmo compasso de breve: sem pausa, sem errar.
Sua mulher: êta mulé trabalhadeira e era também muito bonita! Gostava de receber visita, eu mesmo ia muito lá. Apreciava aquele frango com quiabo que ela fazia no fogao de lenha. Enquanto afogava o frango, vinha me perguntando sobre a vida na capital, o que que eu fazia pra viver e até queria saber quando é que eu ia voltar, coisa que até hoje não sei responder, vou deixando a vida me levar.
Ela pegava aquele jacá, cheinho de algodão, catava aquilo tudo, descaroçava, cardava, depois fiava umas meadas bonitas que ela tingia com semente de urucum e passava raiz de sumaré. Como era inteligente aquela mulher ... Ela pegava aqueles novelos, depois levava lá pro tear onde ela tecia os cortes de calça que ele usava, os baixeiros, coxinilhos, cobertas e tudo mais. E sempre ali, jogando a tiradeira de um lado pro outro e alternando os pés nos pedais.
Cidade? só iam de vez em quando. Pra visitar algum parente ou quando faltava alguma coisa que precisavam comprar, mas iam e voltavam no mesmo dia e ele sempre dizia que aquilo não era lugar para se morar. Era lugar pra Doutor, gente que nem o senhor que precisava estudar, ou então pra quem não tinha mesmo força pra trabalhar.
É, mais o tempo passou e hoje tudo mudou ... veja só como é que tá.
Bom, o resto, vamos deixar ele cantar.
Com esse tempo os meninos foram embora
pra estudar lá na cidade outra escola
Por lá ficaram, já não podem mais voltar
De vez enquando vêm aqui pra passear.
Só ficamos os dois velhos na beira do ribeirão
companheira é a luz da Lua que ilumina o chapadão.
Viver, amigo Rosa, se já era perigoso, ficou muito mais custoso
não se arranja nem peão.
Já não posso com mais nada, minha veia já nem fia
então a gente desconfia que é o fim dessa meada.
Ê, êi, tempo bom se trovejava
Ouvia o vento que aeiouivava
Vou vender todo o meu gado
já não tenho atividade
vou deixar essa morada
vou-me embora pra cidade.
Meu velho Rosa pras veredes lá do céu
só vou levar o que couber no meu chapéu.
Ê, êi, tempo bom se trovejava"
Carta ao velho Rosa - Pedro Antônio
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário